Desigualdade social, afinal: o que é, o que não é; por que e como devemos combater
Texto por Ian Bartholo*, coautoria de Alessandra Souto e Thiago Narcizo
Muito se debate na internet sobre desigualdade, mas o que de fato ela representa nas nossas vidas, como ela se dá e por que temos de combatê-la? Isso é o que tentarei refletir nesse texto.
Bom, inicialmente, gostaria de explanar o que queremos dizer com desigualdade, o que ela é e o que não é, evidentemente, de forma reduzida para que o texto mantenha seu devido caráter introdutório. Para as ciências sociais e econômicas, a desigualdade é mais do que uma simples inequalidade entre dois ou mais indivíduos, ou seja, está muito além de uma situação em que um tem mais ou menos do que outro, mas eles e seus filhos vivem de forma parecida; ela é um fenômeno histórico decorrente de processos econômicos e sociológicos que constroem a sociedade como um todo. Veja no Brasil, por exemplo: negros e brancos certamente são iguais a priori, como ressalta o grande filósofo Frantz Fanon, mas, como resultado de séculos de escravidão e exclusão social e econômica, as duas raças vivem de formas diferentes e são vistas pela sociedade de maneira distinta, com os negros sendo vítimas de mazelas que os brancos sequer conhecem. Nesse caso em especifico, os negros sofrem de um perverso racismo estrutural que permeia as relações sociais, culturais e econômicas, e precisam ser analisados sob esse prisma.
É importante desmistificar algumas falácias ditas há muitos anos pela direita no tocante à desigualdade. A maior delas, provavelmente, é que a desigualdade não importa e o que deve ser analisado é a pobreza, pois ela seria o grande problema. Com efeito, é claro que a pobreza é um tema importantíssimo e deve ser tratado com seriedade, mas não podemos nos levar por essas inverdades envoltas no debate. A pobreza e a desigualdade estão intimamente relacionadas e devem ser vistas em conjunto. Combater a desigualdade social não é só transferir renda do topo para a base, mas possibilitar, por meio de mudanças no tecido social (como investir em educação pública, saneamento, promover políticas afirmativas etc.) o sufrágio socioeconômico dos mais pobres, oferecer-lhes oportunidades para desenvolver as suas “capacidades”, apontadas por Amartya Sen. Políticas assertivas que combatem a desigualdade combatem também, obviamente, a pobreza.
Ademais, ouve-se muito que o combate à desigualdade prejudica o crescimento, pois a taxação progressiva atrapalharia a chamada “Trickle-down economics”, e que os ricos, ao pagarem mais impostos, deixariam de gerar empregos e/ou mudariam de país. Pois bem, Joseph Stiglitz mostra que, na verdade, os mais ricos, ao serem menos taxados, não distribuem a renda aumentando os salários, mas sim embolsam o capital extra. Além disso, o crescimento inclusivo, no qual os mais pobres participam ativamente, tende a ser mais acelerado e sustentável, porquanto, ao inserir mais players dentro do mercado, a economia é aquecida e mais riquezas são criadas.
Desse modo, é importante ressaltar que o fim da desigualdade racial é condição imprescindível para viabilizar a igualdade formal concreta, sonho das democracias burguesas, posto que, para todos serem iguais perante à lei, é preciso minar os problemas do racismo jurídico que comprovadamente ferem esse princípio ao criminalizarem a pele negra. É mentira que aqueles que visam à redução radical da desigualdade social necessariamente querem extinguir os mercados, aniquilar à força todas as diferenças naturais e transformar a sociedade em uma grande floresta de eucaliptos. O que pretendemos, na verdade, é enfrentar com vigor a desigualdade construída historicamente por estruturas sociais que geraram a concentração absurda de riqueza e a opressão de diversos grupos.
Para além dos problemas da desigualdade que envolvem a diferença de oportunidade, é importante comentar sobre os seus problemas intrínsecos, aqueles que são inerentes à diferença abissal de renda e que ocorrem, inclusive, em sociedades em que a pobreza não é um grande problema. Deixando de lado o problema moral da superacumulação de capital (levado em conta até mesmo pelo pai do liberalismo, Adam Smith, em seu livro “Teoria dos Sentimentos Morais), Branko Milanovic, pesquisador da área, aponta em seu artigo “Why Inequality Matters” que sociedades com altos níveis de desigualdade tendem a crescer menos do que poderiam e a ser mais violentas, além de terem a possibilidade de mobilidade social drasticamente reduzida e a política cooptada pelas elites, fator que conduz à destruição da coesão social e, em consequência, à instabilidade que depois desencoraja os investimentos — ironicamente, tendo em vista que os investimentos seriam um motivo que justificaria a desigualdade.
Atrelado a isso, é preciso também termos uma análise mais crítica sobre os índices econômicos para podermos ir além de alguns conceitos. Assim, as críticas do professor Stiglitz ao chamado “pibismo” são importantes para entender como o crescimento se relaciona com a desigualdade e como índices como o PIB devem ser observados sob uma perspectiva mais profunda.
O Brasil cresceu muito durante grande parte do século XX, mais especificamente durante os anos de 1930 a 1980, mas uma pergunta pouco feita é para quem o Brasil cresceu, haja vista que a vida do brasileiro médio não melhorou de forma substancial. Isso porque o aumento de renda oriundo do crescimento estava extremamente concentrado na mão das elites, que diziam ser necessário “aumentar o bolo, para depois dividi-lo”. Com um Estado que corroborava esse modelo econômico, a desigualdade no Brasil, já altíssima desde a sua fundação, crescia vertiginosamente, enquanto a imensa maioria da população passava longe de ver as maravilhas do desenvolvimento. Até que, no fim da década de 90 e no começo dos anos 2000, com mais força nos governos Lula, o Brasil adotou novos pilares do crescimento, baseados no investimento público, na expansão do crédito e, mais importante, na distribuição de renda, principalmente via aumento real do salário mínimo. No pilar da distribuição de renda, encontramos uma das chaves para combater a pobreza e a desigualdade: programas de seguridade social que prestem assistência a diversas famílias, possibilitando, pois, a inserção dessas no mercado e a mobilidade social. Embora o Bolsa Família em si não tenha ocasionado de fato mudanças substanciais na desigualdade por conta do caráter extremamente regressivo do sistema tributário brasileiro (no qual os mais pobres financiam até os programas pensados para eles), nele encontramos uma boa solução para a redução da pobreza, do desenvolvimento das “capacidades” e, potencialmente, a redução da desigualdade, a partir do momento em que o programa for financiado pelos mais ricos.
Pensando em no cenário atual, durante a pandemia da Covid-19, a desigualdade atingiu números históricos, levando em conta os níveis recorde de pobreza e desemprego e o aumento acentuado da riqueza acumulada pelo percentil mais alto da população mundial, com os maiores bilionários do mundo acumulando mais de seis trilhões de dólares, segundo pesquisa da Forbes. Por outro lado, a pandemia mostrou o potencial que medidas de proteção social têm para reduzir a pobreza e a desigualdade, uma vez que o Auxílio Emergencial diminuiu esses índices a patamares nunca antes vistos. É evidente que o modelo adotado de 600 reais por mês não era sustentável por causa de seu custo fiscal, mas essa medida, sem dúvidas, pavimentou o caminho para a discussão de programas mais abrangentes. Em vista disso, os pesquisadores Pedro Ferreira, Letícia Bartholo, Rodrigo Orair e Luís Henrique Paiva produziram um artigo que mostra novas possibilidades para a seguridade social no Brasil. Nesse estudo, eles alertam como o país gasta pouco com programas de transferência de renda aos mais pobres, cerca de 2% do PIB a menos do que a média dos países da OCDE.
Não obstante, se a desigualdade social ocasiona tantos problemas, como podemos enfrentá-la? Note, o combate à desigualdade exige diversos componentes, pois ela se dá em muitas dimensões. O professor Anthony Atkinson traz a tributação progressiva, na qual os ricos contribuem muito e os pobres pouco (ou nada), e a ampliação de programas de seguridade social como duas medidas, ou seja, é preciso transferir a renda do topo para a base ao financiar o Estado pelos mais ricos e, com esse dinheiro, investir em programas que garantam renda para todos. Em paralelo a isso, é mister que o Estado invista também em serviços públicos de qualidade que horizontalizem a educação, o transporte e a saúde, ao reduzir a necessidade do investimento em serviços privados disponíveis apenas aos mais abastados e, consequentemente, reduza a desigualdade.
Em uma última análise, num país como o Brasil, em que a desigualdade está fielmente relacionada com a questão de raça e de gênero, são necessárias mais ações que lutem contra esses problemas em específico. Nesse sentido, o filósofo Abdias Nascimento elencou no seu livro “O Genocídio do Negro Brasileiro” algumas medidas com potencial de mitigar a desigualdade. Entre elas, temos o fomento a discussões que tratem da situação do negro brasileiro, o resgate de informações sobre o tráfico negreiro e a escravidão, o ensino sobre a cultura dos povos africanos nas escolas - como é estabelecido pela lei nº 10.639/03, que pioneiramente alterou as diretrizes e bases da educação nacional - e compensações aos negros do Brasil hodierno, como as cotas, criadas depois da vida de Abdias. Além disso, a pensadora Lélia Gonzalez apontou a necessidade de se aprofundar os estudos a partir da interseccionalidade, ou seja, analisar a masculinidade e a branquitude de forma conjunta, com o fito de entender como as duas questões relacionam-se e, assim, aumentar a eficiência no combate à desigualdade. Dessa feita, é interessante considerar as medidas propostas por Anne Leath no artigo publicado pelo The Guardian, “12 steps to achieve gender equality in our lifetimes”, tais quais tornar a educação sensível às pautas de gênero e encorajar mulheres a ter vocações não tradicionais. Para além dessas possibilidades, e com vistas à intersecção de raça e gênero, pode-se considerar ainda cotas para mulheres em cargos públicos, medidas que impeçam a inequalidade salarial nas empresas, incentivos à criação de “role models” – mulheres em locais de poder que sirvam de inspiração para outras – e, principalmente, investimentos em massa na educação feminina, de modo que desperte o maior interesse em áreas com maior remuneração, como ciência e tecnologia.
Em síntese, a desigualdade se dá de diversas formas e é a fonte de inúmeros problemas no Brasil e no mundo; é preciso, portanto, combatê-la em várias frentes e de maneira organizada, ao mobilizar a sociedade civil a fim de tornar toda a coletividade consciente acerca dos problemas que ela causa. Finalmente, é fundamental entender o papel do Estado como promotor do desenvolvimento humano e da luta contra a desigualdade, como defendem os economistas Amartya Sen, Atkinson, Piketty, Esther Duflo e o terceiro artigo da Constituição Federal. Afinal, por mais eficiente que o capitalismo seja na produção de riquezas, ele é um grande gerador de desigualdades e, por isso, deve ser regulado com vistas a maximizar as suas benesses e minimizar os seus problemas.
*Ian é brasiliense, militante da Juventude Socialista Brasileira (JSB) do PSB-DF e estudante secundarista.
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