Por Gabriela Rollemberg, Folha de São Paulo
A CPI da Covid-19 tem sido uma grande vitrine do manterrupting, conceito ainda pouco difundido no Brasil, especialmente no ambiente político. Manterrupting é um neologismo surgido a partir da junção das palavras em inglês “man” (homem) e “interrupting” (interrompendo) para indicar a interrupção desnecessária de uma mulher por um homem, impedindo que ela conclua sua fala.
A quantidade de exemplos desse comportamento na CPI é vasta, e eles têm sido corriqueiramente noticiados pela imprensa e pelas próprias Senadoras em suas redes sociais, evidenciando como elas têm sido constantemente silenciadas, interrompidas ou taxadas como “nervosas” pelos demais membros, todos homens.
Não houve uma única sessão que os senadores não tenham interrompido senadoras no meio de suas falas, lhes pedido “calma”, cortado a palavra ou feito algum tipo de adjetivação para desqualificá-las. E sem motivo específico, a não ser o incômodo e estranhamento – até mesmo inconsciente – gerado pela ocupação daquele espaço de poder por uma mulher.
Esse fenômeno não acontece apenas na política, mas no nosso cotidiano de forma geral, e a CPI tem contribuído muito para evidenciar esse fenômeno para a sociedade.
A postura dos senadores não foi diferente nos depoimentos das primeiras mulheres ouvidas pela Comissão, Mayra Pinheiro, Secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, e a médica Nise Yamaguchi, confirmando mais uma vez que o que importa é a relação de gênero estabelecida, e não a posição desempenhada pela mulher naquele ambiente.
“Me respeite, senador” foi a frase mais repetida por Mayra, que foi vítima de ataques agressivos sem maiores intervenções da Presidência da CPI para manter a urbanidade daquela sessão. Da mesma forma, a médica Nise, que foi sistematicamente impedida, pelo Senador Otto Alencar (PSD-BA), de responder às perguntas formuladas. A convidada mal começava a falar, e era interrompida de forma contundente e insistente pelo parlamentar.
É esperado que o ambiente da CPI seja hostil, considerando o jogo político entre governo e oposição, que sempre vão disputar o poder e o protagonismo naquele espaço. É também aceitável que tenhamos questionamentos e manifestações duros e incisivos, em especial quando depoentes alegam incorretamente que há estudos confiáveis embasando o uso da cloroquina como tratamento precoce para o coronavírus. No entanto, quando até mesmo Senadores da base governista, que a princípio não teriam interesse em interromper as convidadas, o fazem para pedir por objetividade na fala, fica claro o desconforto gerado na escuta ativa de uma mulher por um homem num ambiente de poder.
Essa questão se evidenciou com a intervenção do Senador Jorginho Mello (PL-SC), que, apesar de ser da base governista, interrompeu a Dra. Nise para pedir que ela fosse mais objetiva em sua fala, “mais econômica” nas respostas. O fato não passou despercebido da Senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), que fez uma colocação sobre a questão das interrupções. Apesar de reconhecer que a depoente poderia ser mais direta nas respostas, ressaltou que “é a primeira vez nesta CPI que alguém da base do Governo interrompe a depoente”, e que isso “isso realmente não é uma rotina, não é normal quando se trata da presença masculina”.
Não é por outra razão que a CPI da COVID está sendo cunhada de “CPI do Machismo”, que principiou já na escolha dos 11 titulares e 7 suplentes, todos homens.
Apesar disso, como já destacou Eduardo Galeano, “a primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la”, e a participação da Bancada Feminina na CPI tem sido fundamental, não apenas no trabalho de investigação da Comissão, mas especialmente para expor o que acontece no cotidiano de todas as mulheres. Como ressaltou recentemente a Senadora Leila Barros, “apesar de cansativo, às vezes é bom ser desacreditada e acusada de ‘estar nervosa’ ao vivo para todo o país, pois dessa forma fica exposto o machismo estrutural que existe no Brasil. No ambiente político não é diferente. Ele apenas reproduz o que muitas de nós vivemos diariamente”.
O simples fato do machismo estrutural no ambiente político estar sendo pautado pelas Senadoras é motivo para celebrar, pois têm trazido reflexões para a própria audiência da CPI, e para a população em geral, e pode ser o primeiro passo para produzir mudanças no nosso caldo cultural patriarcal.
Representatividade importa. A Bolívia saiu na frente, alcançando recorde histórico de mulheres eleitas: 56% das cadeiras no Senado. O Chile teve a primeira constituinte paritária do mundo, na qual as mulheres foram ainda mais votadas que os homens. No Brasil, precisamos tornar a política um ambiente menos masculino. O Senado brasileiro tem nesta Legislatura uma bancada feminina de apenas 11 senadoras. Isso corresponde apenas 14,8% do total de 81 cadeiras, percentual muito inferior à proporção de mulheres na população brasileira, em que elas correspondem à mais da metade.
Por essa razão é que precisamos trabalhar para não apenas normalizar a participação de mulheres em ambientes como a CPI da Covid, mas construir uma cultura de respeito e escuta ativa às mulheres, abolindo comportamentos como o manterrupting, para que possamos avançar enquanto sociedade.
*Gabriela Rollemberg é advogada, especialista em Direito Eleitoral, cientista política, cofundadora da “Elas Pedem Vista” e da “Quero Você Eleita”. Foi secretária-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (biênios 2015-2017 e 2019-2021)
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